Por que preciso desenvolver competências de consultoria?
- Fernando Ximenes
- 27 de jun.
- 11 min de leitura
Atualizado: 28 de jun.

Este é o primeiro capítulo do e-book Consultoria não é só para consultores, publicado sempre no último sábado de cada mês.
Para responder à pergunta do título, temos que recuar no tempo até a década de 1970, quando o mundo e as mudanças organizacionais ainda eram lentos e incrementais. O foco estava na eficiência operacional.
A economia extrativa e industrial prevalecia sobre os serviços.
Nas empresas analógicas, predominava o paradigma da engenharia, da organização dos processos produtivos, dos projetos clássicos (ainda se usava PERT e CPM), e das melhores práticas.
A consultoria, tal como conhecemos hoje, existia como uma atividade secundária, restrita e seletiva: poucas firmas, poucos consultores, grandes clientes, negociações quase cem por cento baseada em relacionamentos de alto nível.
O início da transformação
Porém surgiam sinais de mudança, como o movimento de qualidade total vindo do Japão, deslocando o centro de poder constituído no mundo pós 1945.
Quem não viveu para ver terá dificuldade de imaginar o que foi o avanço dos automóveis e eletrônicos japoneses sobre a sociedade ocidental, o domínio do mercado de videogames, as técnicas de gestão derivadas do Toyota Production System, e os prêmios de qualidade que se espalharam pelo mundo.
A ponto de um Vice-Presidente da então toda poderosa AT&T confessar um pesadelo sinistro: o de que a maioria dos cérebros havia se mudado para as terras nipônicas.
Em paralelo, os grandes computadores, ainda caros demais, se difundiam pelos bancos e grandes empresas, impulsionando uma forte concentração econômica.Em meio a essa turbulência, as consultorias começaram a florescer.
A estratégia, que era um assunto restrito, tomou assento na primeira fila.
McKinsey, BCG, Bain e Booz-Allen competiam através de seus frameworks e estudos proprietários.
Um nível abaixo, as consultorias nascidas sob as asas das auditorias globais se aproveitavam do acesso compulsório e privilegiado da elaboração de balanços e pareceres para surfar na onda das recomendações derivadas desses trabalhos.
O que todas tinham em comum era a fé nas metodologias: um caminho seguro, com etapas, tarefas e passos rígidos, entre o desafio dos clientes e as soluções.
Só assim seria possível gerar escala (ainda dentro do paradigma industrial), alocar trabalho a profissionais menos experientes, e alavancar a experiência dos sócios.
As publicações sobre estratégia vieram em seguida, assim como os primeiros gurus. Não chega a surpreender que o primeiro grande best-seller gerencial, In Search of Excellence, escrito por Tom Peters, ex-sócio da McKinsey, exaltasse a qualidade das melhores empresas americanas diante da invasão japonesa.
Talvez como um presságio do que estava por vir, a maior parte dessas empresas exemplares se perdeu na história, e o próprio Tom Peters confessou que alguns de seus dados foram forjados.
Os projetos envolviam uma atividade intensa de levantamento de dados e entrevistas, desaguando em diagnósticos e recomendações metodologicamente construídos. Que, sem surpresa para ninguém, coincidiam com os serviços oferecidos pelas consultorias encarregadas deles.
Os problemas, as soluções e os resultados eram previsíveis.
Não deixa de ser sintomático lembrar que, no site de uma das principais consultorias estratégicas, estava escrito que: "Nossa obrigação termina nas recomendações. A implementação e os resultados são responsabilidade do cliente".
Não deixa de ser sintomático, também, que um dos livros mais vendidos até hoje sobre o processo de consultoria diz, literalmente, que se o consultor tiver seguido com diligência todos os passos da metodologia, ele terá se desempenhado com perfeição.
Nada pode ser mais claro: a definição de consultoria parava nas recomendações; "eu faço a minha parte, você faz a sua", numa clara separação de responsabilidades.
Nuvens no horizonte
O tempo se acelerava.
Os computadores encolhiam em tamanho e cresciam em capacidade, saindo dos centros de processamento de dados para a mesa das pessoas; vieram a globalização, a financeirização, e a hipercompetitividade (quando a oferta de produtos e serviços se tornou maior do que a demanda e o mercado se transformou em guerra).
A internet se consolidava.
A instabilidade econômica potencializava a incerteza, e a incerteza é o motor das consultorias.
A IBM (até então o grande player tecnológico) usava o FUD (Fear, Uncertainty and Doubt) para assustar seus clientes que avaliavam mudar para a concorrência e as novas tecnologias. E as consultorias passaram a lançar mão do FOMO (Fear of Missing Out) para estimular a demanda por seus projetos.
A hipercompetitividade ameaçava o seu feudo, e silenciosamente elas passaram a adotar as técnicas de marketing do consumo de massa; o apelo emocional passou a fazer parte do "produto".
O anúncio televisivo de uma consultoria famosa mostrava um executivo pescando de barco num lago tranquilo quando, de repente, um peixe enorme de cara maligna saltava das águas e engolia o pobre coitado.
Iniciou-se uma era de fusões, aquisições e aberturas de capital que alcançou também as consultorias, nas asas do e-business - uma tendência que nunca mais arrefeceu, como sintoma e consequência dos riscos empresariais.
Talvez a memória esteja quase perdida, mas aconteceu aí o primeiro grande movimento que visava substituir pessoas por tecnologias. A reengenharia foi uma febre que durou anos, engajou milhares e milhares de consultores, custou milhões de dólares, e naufragou quando se percebeu que, junto com as gerências médias, as empresas estavam jogando fora os conhecimentos tácitos que garantiam o seu funcionamento.
Michael Hammer, o guru maior do movimento, escreveu que "não carregamos feridos; os que não puderem acompanhar serão metralhados abaixo dos joelhos".
Posteriormente, quando a reengenharia fez água, admitiu que "esquecemos das pessoas". Aquelas que precisariam conduzir os projetos através dos quais elas próprias acabariam sendo demitidas.
Mas a semente estava lançada.
Olhando em retrospectiva, a reengenharia foi o canto do cisne das metodologias tradicionais, com a ênfase nos processos, na modelagem as-is -> to-be, e na inserção definitiva da tecnologia no tecido organizacional.
Atentas à oportunidade, as consultorias descobriram que não precisavam e nem desejavam mais a companhia dos auditores, e de seus freios regulatórios.
A separação entre a Arthur Andersen e a Andersen Consulting (posteriormente Accenture) foi o apito de cachorro do que viria pela frente.
Tempestades
A virada do século ficou marcada pelo bug do milênio, pelo domínio meteórico do SAP, (o primeiro software a se espalhar pelas entranhas da organização), e pelas falências de empresas tradicionais envolvidas em descompassos tecnológicos e éticos. A primeira bolha da internet estourou com a quebra da Nasdaq, porém não diminuiu a euforia. Startup se tornou a palavra da moda, na esteira do capital de risco.
A consultoria ocupava espaços nunca antes imaginados.
Já aí, dezenas de ex-consultores estavam sentados em diretorias de empresas pelo mundo afora. Muitos ex-sócios e dirigentes criavam suas próprias empresas, apoiadas nos relacionamentos construídos. Como consequência, as visões do mundo organizacional propagadas pelas consultorias se tornou prevalente.
Peter Drucker escreveu que "a consultoria é uma profissão singular, na medida em que define o conceito e a prática do management da qual se beneficia". O significado e o impacto dessa constatação talvez até hoje não tenham sido compreendidos.
Lembro de chegar a Congonhas, no final de um dia chuvoso, e encontrar uma de suas paredes externas pintada com a frase: "Pela primeira vez juntos no Brasil", e decorada com vários rostos sorridentes. Um conjunto de rock? Nada disso. Era o anúncio do encontro com os astros maiores do management, ao qual milhares - literalmente milhares - de executivos e aspirantes a executivos compareciam para ouvir as palavras da salvação, ou os segredos do sucesso. Jack Welsh, o sacerdote maior, apresentava-se remotamente no telão. Naquela época, o herege que se aventurasse a criticar "o maior executivo do século" seria queimado na fogueira corporativa. Talvez os participantes embevecidos não gostem de lembrar que, anos após, a GE teria suas ações retiradas da bolsa de Nova Iorque. A realidade é que, acuados, vítimas de um complexo de inferioridade diante de tanta sabedoria, os executivos passaram a recorrer cada vez mais às consultorias. Não muito diferente dos que hoje se ajoelham no altar da Singularity embevecidos pelo Vale do Silício (apesar das dezenas de milhares de sem-teto espalhados pelas ruas). As empresas se transformaram em "fábricas" de projetos, esquecidas de que em todo projeto a empresa sangra, e sangramentos excessivos não são sintomas de saúde.
Enquanto isso, em meio a tantas mudanças, as metodologias continuavam presas ao velho paradigma, sem nenhuma evolução substancial. Os métodos ágeis ganharam destaque, porém com pouquíssimo efeito organizacional prático fora da porteira de TI; mais calor do que movimento. Para um mundo transformado, relativístico, as consultorias continuavam propondo e praticando abordagens mecânicas e newtonianas. Com uma importantíssima diferença: praticamente todas as consultorias médias e grandes criaram um braço de implementação e operação visando alcançar contratos de médio prazo, aumentar a previsibilidade da receita e, acima de tudo, se entranhar nas empresas.
Recordo uma reunião da qual participei no Vale do Silício com um vice-presidente executivo da consultoria onde trabalhava. Ali ele apresentava a "estratégia" a ser seguida: 1 x 2 x 4 -> viral. Ou seja, entrar o cliente, dobrar a participação, quadruplicar a participação, tornar-se uma espécie de vírus do qual ele não conseguiria se livrar. Diante das altas taxas de insucesso dos projetos, inventou-se a gestão de mudanças. O problema estava nas pessoas, que resistiam a fazer o que as consultorias recomendavam. Projetos em cima de projetos.
Sintomaticamente, as próprias consultorias apontavam taxas de fracasso superiores a oitenta por cento para os processos de mudança (não os seus próprios, obviamente). O modelo persistia porque, de certa forma, interessava a clientes e consultores. Para os consultores, receita. Para os executivos, a facilidade de encontrar culpados pelos insucessos.
Com isso, o espaço da função gerencial / executiva encolheu. Essa forma de abordar os desafios estava tão enraizada que novos gerentes e executivos talvez nem se dessem mais conta de que sua responsabilidade e importância haviam sido diminuídas, pois seus role models já se comportavam assim.
Em algum momento desse processo, os elos de confiança se perderam: entre as consultorias e seus consultores, e entre os clientes e as consultorias.
E agora, José? O que as competências de consultoria têm a ver com isso?
O fato de que a consultoria e o uso das consultorias tenha se desvirtuado não significa que seja prejudicial ou desnecessária. Muito pelo contrário. Vivemos um tempo de ruturas. A ordem mundial se esfarelou. As organizações multilaterais foram escanteadas por acordos bilaterais e protecionismos. Estamos diante de uma emergência climática. A crise econômica de 2008 expôs as fragilidades estruturais dos sistemas financeiros. A pandemia abalou as cadeias de suprimentos globais e a crença na eficiência máxima. As big techs surgiram como um quinto poder que atravessa fronteiras nacionais e foge ao alcance dos governos. A inteligência artificial redefine o campo de jogo de maneiras inéditas.
Apesar de tantas mudanças, a essência dos desafios empresariais continua praticamente a mesma (relevância, lucratividade, permanência) embora as soluções tenham que ser radicalmente modificadas.
Conta-se que Einstein, enquanto professor universitário, pediu a um assistente que reproduzisse as questões da próxima prova que queria aplicar. Horas depois, o jovem retornou preocupado, dizendo: "Mestre, as perguntas são as mesmas do ano passado". Ao que Einstein retrucou "Sim, é verdade; mas as respostas são todas diferentes".
Seria insensato acreditar que os mesmos conceitos e métodos criados para um mundo que desapareceu na fumaça do tempo continuem sendo eficazes no contexto atual.
Não é possível turbinar um Boeing 737 para que se transforme num ônibus espacial.
Antes, de uma forma ou de outra, os clientes conseguiam dar conta de seus desafios através das competências gerenciais, técnicas e socioemocionais, e com o apoio das consultorias.
Não mais. Tudo isso continua sendo necessário, mas deixou de ser suficiente. O que nos falta são competências consultivas que nos permitam encarar a complexidade do ambiente empresarial contemporâneo.
Porém não aquelas que, ainda hoje, continuam sendo ensinadas por instituições de prestígio, como a Coursera:
Comunicação e escuta
Resolução de problemas
Liderança
Gestão de mudanças
Flexibilidade
Pensamento criativo
Gestão de projetos
Colaboração
Cliente em primeiro lugar
Pensamento analítico
Pensamento crítico
Persuasão
Expertise
Essas competências genéricas, de definição imprecisa, quase aleatórias, carecem de um profundo upgrade para que estejam à altura dos desafios atuais. Por exemplo:
Sense-making: a capacidade de dar sentido à realidade para que seja possível agir sobre ela.
Pensamento complexo: quando as causas e efeitos são tantos que é impossível conhecê-los antes de emitir as propostas, fechar os contratos e começar a trabalhar. Elas só poderão ser determinadas retrospectivamente.
Pensamento crítico: a capacidade de filtrar as dezenas de teorias, ideias e modismos que nos chegam a cada dia, e extrair dali o que faz sentido e exige atenção agora, o que pode seria deixado para depois, precisa ser observado, ou merece ser esquecido.
Foco nos desafios antes das ideias: o entendimento de que os desafios são quase permanentes e estão em primeiro plano; as soluções serão cada vez mais precárias, sujeitas a uma obsolescência acelerada.Atenção aos custos de adoção: enxergar além das soluções pontuais, e determinar os custos financeiros, tecnológicos, políticos e organizacionais ao longo do seu ciclo de vida.
Gestão da permanência: saber o que mudar, mas preservar e proteger o que ainda tem valor. Refrear a paixão descontrolada pelo novo. Nem toda a água do rio corre à mesma velocidade.
Liderança sem autoridade hierárquica: reconhecer que, numa realidade altamente complexa, o comando e controle puro não funciona mais, e saber mobilizar as pessoas para que mudem a forma de pensar e agir diante das transformações.
Planejamento em três horizontes: cultivar as sementes do futuro que existem na empresa; aumentar a eficiência dos processos, sistemas, produtos e serviços que garantem o dia a dia e financiam o futuro; estender a vida útil do que ainda pode produzir resultados; e conduzir experimentos controlados (safe-to-fail) para construir o futuro desejado.
Integração da inteligência artificial: nenhuma outra inovação terá maior impacto sobre as soluções (não os desafios) empresariais do que as IAs, por bem ou por mal. Adotá-las de modo impensado será tão nocivo quando rejeitá-las por princípio,
Vale então a pergunta: o que isso tem a ver comigo? Se você é um executivo ou gerente, continuará sendo contratante de consultoria, porém agora terá que ser protagonista e corresponsável pelos resultados dos projetos. Mesmo que não perceba. Mesmo que não queira. Se você é consultor, será obrigado a aceitar que não detém a verdade, e que a "verdade", qualquer que seja ela, será uma construção conjunta com os clientes. Ainda que isso diminua o seu espaço e a sua autoridade delegada. Se você é consultor interno, terá que estar à altura dos desafios, e não apenas carregar esse título. Nem que para isso precise desenvolver competências que estão hoje fora do seu cardápio.
Se você é um profissional liberal ou especialista técnico, não escapará da obrigação de enxergar além de pareceres, relatórios, diagnósticos ou implementações prontas, e considerar a efetividade e os efeitos de tudo isso sobre as organizações. Sob pena de ser substituído por tecnologia.
A consultoria, tal como conhecemos hoje, foi uma solução desenvolvida ao longo de décadas para resolver desafios de ambientes razoavelmente previsíveis e estáveis. Mas isto é passado e não volta mais. Tal como está, ela se tornou obsoleta.
A única definição atual possível de consultoria é a de uma atitude e uma prática de compromisso com a saúde das organizações.
Se você é consultor, talvez esteja perguntando também: "o que sobra para mim, quando meus clientes e outros profissionais detiverem as mesmas competências que eu?" Tenho uma boa e uma má notícia.
A má notícia (nem tão má assim) é que parte do espaço tomado dos executivos e gerentes terá que ser devolvida. Não tenho dúvidas de que, hoje, você se sente desconfortável de ter que atuar aí.
A boa notícia é que, se você estiver à altura, a concorrência será muito pequena. A expertise derivada do trabalho com clientes diversos, em contextos variados, acompanhada da reflexão e refinamento contínuo das competências; a capacidade de perceber padrões, sinais fracos, e anomalias; o entendimento das soluções que funcionam ou não funcionam (e por que) são vantagens comparativas que somente os consultores profissionais poderão desenvolver.
Na medida em que os próximos capítulos sejam publicados, os links estarão aqui,
26 de julho de 2025: Quando as mudanças se tornam permanentes
30 de agosto de 2025: Quando as mudanças se tornam complexas
27 de setembro de 2025: Quando as competências tradicionais se tornam insuficientes
25 de outubro de 2025: A arte de desenvolver competências
29 de novembro de 2025: O bônus do aprendiz e o desafio da expertise
27 de dezembro de 2025: Consultoria colaborativa: novos papéis e responsabilidades para consultores e clientes
31 de janeiro de 2026: A urgência de repensarmos os contratos
28 de fevereiro de 2026: A "destruição" do conceito tradicional de projeto
28 de março de 2026: A redefinição da ideia de solução
25 de abril de 2026: Diretrizes para uma consultoria colaborativa
30 de maio de 2026: Valor compartilhado
Crédito da imagem: foto da pintura Christ among the doctors, Jusepe de Ribera, Wikimedia
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