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Quando as mudanças se tornam complexas

  • Foto do escritor: Fernando Ximenes
    Fernando Ximenes
  • 1 de set.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 27 de set.


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O tema desta edição é o efeito das mudanças complexas sobre a consultoria e, por extensão, sobre os clientes e profissionais em geral.


Se antes tratávamos as mudanças como eventos pontuais, hoje elas são múltiplas, simultâneas e frequentes, o que exige novas atitudes e competências de todos nós.


Este não é apenas mais um texto genérico sobre a complexidade, e sim uma tentativa de entender os impactos que ela tem sobre a atividade de consultoria, do lado dos consultores e dos clientes.



 

Quando as mudanças se tornam complexas

 

Desta vez quero confessar uma preguiça. Tentei abordar este assunto por vários ângulos, e não consegui fazer nada melhor do que Sonja Blignaut, no artigo "7 Differences between complex and complicated". Por isso, o que se segue é uma transcrição do artigo, com alguns complementos e comentários meus em verde escuro.

 

 

Quando tomamos decisões, tendemos a confundir os sistemas complexos com aqueles que são apenas complicados, e procuramos soluções racionais sem perceber que "aprender a dançar" com um sistema complexo é algo definitivamente diferente de 'resolver' os problemas que nascem dele. [Roberto Poli]

 

Muita gente acredita que a complexidade é apenas algo complicado ao extremo; ou seja, que existe um continuum e que a diferença é de grau, e não de tipo.

Entretanto, quando consideramos as grandes diferenças entre esses estados, tendo a concordar com Dave Snowden quando ele diz que há uma mudança de fase entre eles; ou seja, são tipos de sistemas completamente diferentes. 

Por que isso é importante: enquanto, ao tomarmos decisões, tivermos a perspectiva de que estamos diante de sistemas complicados, vamos admitir por princípio que somos capazes de controlar as consequências das nossas ações; encontrar soluções para os problemas; e desperdiçar um caminhão de dinheiro com consultores especialistas que nos prometam trazer as "respostas". Para que as organizações se tornem mais resilientes e sustentáveis, a ciência gerencial precisa avançar além de seus fundamentos newtonianos em busca de uma compreensão da complexidade. Roberto Poli articula a diferença entre complicado e complexo da seguinte forma: problemas complicados se originam de causas que: podem ser distinguidas individualmente; podem ser endereçadas uma a uma; para cada input do sistema há um output correspondente. Mais ainda, que o sistema pode ser controlado, e os problemas que apresentam comportam soluções permanentes.

 

[O método MECE (mutually exclusive, collectively exaustive] da McKinsey, é típico dos sistemas complicados, mas totalmente ineficaz diante de sistemas complexos]

 

Por outro lado, problemas e sistemas complexos resultam de redes de causas múltiplas que interagem entre si, e que não podemos distinguir individualmente. Eles precisam ser abordados como sistemas inteiros e indivisíveis, com a peculiaridade de que pequenos inputs tendem a resultar em efeitos desproporcionais. Os problemas que apresentam nunca podem ser considerados resolvidos de uma vez por todas e, pelo contrário, nos obrigam a uma gestão sistemática; tipicamente, qualquer intervenção se desdobra em novos problemas como resultado das intervenções feitas sobre eles. Sistemas assim não podem ser controlados - o melhor que temos a fazer é influenciá-los, ou aprender a "dançar com eles", como Donella Meadows observou bem.

 

[Um exemplo disso é a decisão das empresas de retornarem ao trabalho presencial, depois de um longo período de trabalho remoto, e depois híbrido, em razão da COVID-19. Se esta for uma decisão rígida e detalhada em procedimentos, ela será incapaz de perceber, atuar positivamente e aprender sobre as dinâmicas que se formarão a partir daí, e que são imprevisíveis no instante da decisão. O resultado poderá ser uma turbulência perigosa no funcionamento da organização]

 

Vamos examinar cada um desses fatores em separado.  

1. Causalidade

 

Em sistemas complicados: caminhos lineares de causa e efeito nos permitem identificar as causas específicas originais dos efeitos observados. Em sistemas complexos: como estamos lidando com padrões que surgem de diversas causas interconectadas que interagem entre si, não há caminhos lineares de causa e efeito. Implicações: A tentativa de chegar a causas raízes é em grande parte uma perda de tempo nos sistemas complexos. No entanto, quantas vezes tomadores de decisão manifestam exatamente essa necessidade?

 

[O uso da técnica dos cinco porquês, Ishikawa e similares nos daria uma falsa sensação de segurança se aplicada a sistemas complexos, e conduziria a soluções que nos colocariam diante de problemas bem mais difíceis do que os problemas originais.]

 

2. Linearidade

 

Em sistemas complicados: todas as saídas do sistema são proporcionais à uma entrada conhecida. Aqui se aplica a física newtoniana.

 

Em sistemas complexos: as saídas não são proporcionais e nem linearmente associadas às entradas; pequenas mudanças numa das partes do sistema podem causar saídas súbitas e inesperadas em outras partes do sistema, ou mesmo provocar uma reorganização sistêmica ampla.

 

Implicações: iniciativas ambiciosas e custosas de mudança podem gerar impacto zero, enquanto que uma palavra errada em um e-mail, ou uma imagem infeliz numa camiseta, podem provocar uma revolta no sistema como um todo, e destruir a reputação de uma marca. Pequenos experimentos nos quais seja aceitável fracassar em segurança são mais úteis do que grandes projetos desenhados para serem à prova de falhas. [O que estamos assistindo hoje, com a regulação inicial das plataformas digitais para prevenir a pedofilia, surgiu pelo vídeo de um influencer que fez coincidir (de boa ou má vontade) políticos de diversos partidos, e acelerou de maneira totalmente imprevisível a aprovação de uma lei que, meses atrás, ninguém consideraria possível.]

3. Redutibilidade

 

Em sistemas complicados: podemos decompor o sistema em suas partes estruturais, e compreender plenamente as relações funcionais entre elas em nível de detalhe. Em sistemas complexos: não podemos dar por certo que uma determinada estrutura tem uma função própria, já que as partes estruturais do sistema são multifuncionais. Ou seja: a mesma função pode ser realizada em diferentes partes da estrutura. Essas partes têm interrelações ricas, e podem modificar umas às outras de modos inesperados conforme interagem. Portanto, nunca devemos assumir que é possível compreender plenamente essas interrelações.

Implicações: grande parte das metodologias da consultoria e de desenvolvimento organizacional partem do princípio de que um problema e/ou sistema pode ser decomposto em seus componentes elementares, compreendidos, corrigidos e otimizados. Pense numa das ferramentas mais utilizadas na mudança organizacional - a restruturação - que muitos acreditam ser a cura para a maioria dos problemas de mudança. Sistemas complexos são emergentes, maiores que a soma de suas partes; precisamos interagir ou “dançar” com o sistema a fim de poder influenciá-lo, e também aceitar a realidade de que o simples fato de estarmos presentes modifica o sistema. Tentativas de reduzir ou redistribuir um sistema mudarão seus aspectos fundamentais, ou até destruirão propriedades que mais valorizamos, como a cultura e a resiliência.

 

[As metodologias tradicionais baseadas em etapas, tarefas e passos, em que um processo é desmembrado no as-is e reconstruído em um to-be, pressupondo que temos um caminho reto e direto do início ao fim do projeto, já deveriam ter sido condenadas ao esquecimento, embora sejam a quase totalidade do que as consultorias fazem hoje. E os clientes esperam que façam.] 

4. Capacidade de controle e resolução

 

Em sistemas complicados: os contextos e interações podem ser controlados, e os problemas que apresentam podem ser diagnosticados e resolvidos quase permanentemente.

 

Em sistemas complexos: problemas complexos se apresentam como padrões emergentes que resultam de interações dinâmicas entre diversas partes conectadas sem linearidade. Nesses sistemas, raramente temos condições de distinguir o problema real, e mesmo intervenções pequenas e bem intencionadas podem resultar em consequências desproporcionais e indesejáveis.

 

Implicações: sistemas assim estão sujeitos a um alto nível de surpresa e incerteza, e as intervenções (que podem estar limitadas até à simples observação do sistema [como consultores andando pela empresa] podem induzir mudanças inesperadas ou até desafios maiores do que o original. Precisamos passar de um raciocínio de "problema e solução" para "padrões e evolução".

 

 

[O caso da medida provisória do PIX, em janeiro de 2025, é emblemático. Uma fake news impulsionada na internet e, tecnicamente, facílima de comprovar falsa, ganhou ares de uma verdade avassaladora e fez com que o Governo Federal tivesse que recuar diante da iminência de uma crise. Em agosto de 2025, uma operação policial contra o PCC permitiu que uma medida administrativa fizesse exatamente o mesmo, e ninguém fala mais nosso.]

5. Condicionantes (abertura à direita)

 

Em sistemas complicados: o motivo pelo qual a premissa de "uma estrutura - uma função" é válida em sistemas complicados é que seus ambientes são delimitados, ou seja, existem condicionantes (restrições) fortes que só permitem ao sistema interagir com outros tipos determinados de sistemas. Segundo Poli, "as funções podem ser delimitadas fechando o sistema (nenhuma interação) ou fechando o ambiente (interações limitadas ou restritas)".

 

Em sistemas complexos: sistemas complexos são sistemas abertos, na medida em que costuma ser muito difícil definir onde um sistema começa e o outro termina. Sistemas complexos também tendem a ser aninhados, e fazer parte de outros sistemas complexos de maior escala. Por exemplo: uma empresa dentro de um segmento de mercado dentro de uma economia nacional e dentro de uma economia global. Portanto, é impossível separar o sistema do seu contexto.

 

Implicações: o contexto é um fator crítico, e ignorá-lo equivale a aceitar riscos imensos. Quando a organização se torna excessivamente voltada para dentro, esse olhar para o próprio umbigo faz com que se torne vulnerável. Assegurar que mecanismos de feedback adequados e diversos estejam sendo utilizados é um imperativo estratégico.

 

[A relação entre consultorias e clientes, nos projetos atuais, se enquadra aqui. A complexidade das interrelações torna impossível dizer onde termina o consultor e começa o cliente. O mundo dos entregáveis da consultoria deixou de existir em grande parte. Conforme um projeto avança, consultores e clientes se modificam; o projeto se modifica; e quando o projeto termina, não são mais os mesmos. Só os departamentos de compras não enxergam que seja assim.]

6. Capacidade de conhecer

 

Em sistemas complicados: por serem fechados e poderem ser desconstruídos, esses sistemas podem ser conhecidos e modelados na íntegra.

 

Em sistemas complexos: acredito que as palavras sejam do físico Murray Gell-man: “O único modelo válido de um sistema complexo é o próprio sistema.” A complexidade de um sistema não depende da quantidade de dados ou conhecimentos disponíveis. Não podemos transformar sistemas complexos em complicados gastando mais tempo e recursos na coleta de mais dados ou no desenvolvimento de teorias melhores. 

Implicações: A única maneira de compreender verdadeiramente um sistema é interagir com ele. Os dados sempre foram uma espécie de encantamento para os tomadores de decisão, fazendo com que imaginassem ser possível compreender suas organizações à distância - confortavelmente sentados em suas torres de marfim, tomando decisões de consequências profundas sem a compreensão verdadeira do impacto potencial dessas decisões. Do mesmo modo, big data ainda é o foco de muitas organizações que tentam compreender o comportamento de seus clientes. Embora certamente tenha valor, o big data e os métodos de coleta de informações associados a ele levantam questões éticas e morais muito sérias. Além disso, seu valor é limitado: o big data pode dizer para onde estou indo, quando, quanto estou gastando, e os métodos de pagamento que estou utilizando ... mas nunca poderá dizer o porquê de tudo isso, e quais as minhas motivações. Por isso, resumidamente, temos que nos aproximar do sistema e, com o passar do tempo, iremos adquirir uma compreensão melhor do todo que emerge das interações, e não apenas de suas partes.

 

[Uma lição importante para clientes e consultores, com impacto direto na amplitude dos projetos, na precificação, nos contratos e nos métodos, é o fato de que consultorias não têm a mínima condição de conhecer as circunstâncias do cliente em tempo de levantamento, e nem clientes deveriam esperar por isso.]

 7. Criatividade e adaptabilidade

 

Em sistemas complicados: necessitamos que uma força externa atue sobre eles, forçando-os a mudar. 

Em sistemas complexos: esses sistemas são capazes de observar a si mesmos, aprender e se adaptar. Eles são criativos. Segundo Poli, “Tudo muda, mas nem tudo é criativo. A capacidade implícita ou explícita de mudar a perspectiva com que enxergamos uma situação é uma das características que define criatividade. Mas a criatividade também inclui alguma capacidade de perceber valores positivos ou negativos, e aceitá-los ou rejeitá-los. Portanto, ela é também uma fonte de esperança e desespero. Nenhuma dessas propriedades existe em sistemas complicados.“

 

Implicações: os sistemas complexos são adaptativos e capazes de aprender. Nos sistemas humanos complexos, os construtos de identidade e inteligência desempenham um papel crítico. As pessoas tendem a resistir às reorganizações, às iniciativas determinadas de cima para baixo, e a introdução de novas formas de trabalho que exigem novos papéis. E tudo isso conduz à disrupção da dinâmica e das estruturas sociais, podendo levar a consequências muito indesejadas. Por exemplo: as pessoas podem fingir aceitação mas, ao mesmo tempo, sabotar o processo de mudança de maneiras sutis. Porém, da mesma forma, na existência de condicionantes corretos, e da liberdade de se adaptar de formas relevantes ao contexto, as pessoas desses sistemas podem ser mobilizadas para evoluir de modo inesperadamente benéfico.

 

[A consultoria só existe porque há complexidade nas organizações. Como disse Gerald Weinberg, "ninguém procura consultoria quando o mundo está se comportando normalmente". Longe de serem anomalias, essas dificuldades são intrínsecas ao mundo moderno, e são elas que justificam a existência da consultoria. Ao mesmo tempo, elas colocam uma luz sobre os condicionantes - restrições, facilitadores, indutores - que precisamos conhecer para conseguir mudanças positivas. Seria impossível jogar vôlei sem a marcação da quadra (um condicionante restritivo / positivo). Porém, dentro da quadra, mesmo respeitando as regras, cada jogo será único e imprevisível no seu início. Nas organizações não pode ser diferente. ]

 

Esta não é uma lista completa, e há várias outras diferenças que poderíamos explorar, mas espero que essas reflexões sejam úteis para facilitar a melhor compreensão desses diferentes tipos de sistema, e de como agir sobre eles de maneira apropriada. É importante notar, também, que na maioria dos sistemas humanos, o complexo e o complicado coexistem. Ou seja: encontraremos problemas complicados em sistemas complexos, e problemas complexos em sistemas complicados. Portanto, o primeiro passo de qualquer intervenção deve ser o esforço sério e concentrado de compreender o ambiente no qual estamos intervindo.

 

Sonja Blignaut

 

[Dave Snowden e, antes dele, Edgar Schein, nos alertam para o fato de que toda intervenção de consultoria pressupõe a complexidade. Sem ela, a consultoria seria dispensável ou até prejudicial. Porém não há nenhum projeto de consultoria que não seja um misto de componentes complicados, ou até simples. Portanto, as exigências dos clientes e os métodos dos consultores deveriam respeitar essa dualidade. Usar métodos adequados à complexidade sobre componentes complicados resulta em confusão; usar métodos complicados sobre componentes complexos pode nos levar ao caos.]


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