Quando as competências tradicionais se tornam insuficientes
- Fernando Ximenes
- 27 de set.
- 5 min de leitura

O tema desta edição é o efeito das mudanças permanentes e complexas sobre a competências exigidas de consultores e clientes.
Se, em tempos anteriores, havia uma separação entre os dois lados - os clientes contratavam, os consultores executavam, os clientes incorporavam os resultados - hoje isso continua existindo, embora numa proporção bastante reduzida, e não dá mais conta da manutenção da saúde organizacional, e nem da viabilidade da profissão de consultoria.
As regras do jogo mudaram. Imagine como se jogava futebol, basquete, voleibol há três décadas. Imagine a fisiologia, as táticas, a intensidade, o calendário, e as pressões de hoje.
Nem o jogo nem os jogadores são os mesmos.
Algo similar acontece nas relações de consultoria, e é disso que falaremos aqui.
Quando as competências tradicionais se tornam insuficientes
Dizer que a consultoria precisa evoluir é fácil. Entender por que precisa evoluir, também. A situação atual está longe de ser aceitável. Todos concordam, mas isso não nos tira do lugar.
Seríamos como políticos em tempos de eleição, clamando por melhoras na saúde, na educação, na segurança e na moradia. Quem haveria de discordar?
Porém as questão com que nos defrontamos são outras. Mais do que as necessidades, mais do que os motivos, falta responder: (1) para onde; (2) e como.
Para onde precisamos ir?
Quase como um spoiler, a consultoria permanece sendo uma relação transacional, e precisa se tornar uma relação colaborativa.
Numa relação transacional, um compra e o outro vende. Um solicita e o outro executa.Praticamente todos os projetos de consultoria funcionam assim; ou, melhor dizendo, estão organizados assim e não funcionam.
As taxas de sucesso medidas na forma de atingimento dos resultados esperados, tal como descritos em propostas e contratos, mostram uma tendência firme de queda, e mesmo os números de hoje são alarmantes, como especialistas do porte de Bent Flyvbjerg vem reportando com muita credibilidade.
Custos, prazos, benefícios e até fatores menos tangíveis como satisfação com o processo de execução formam o retrato claro de um fim de ciclo.
Duas razões pelas quais ainda relutamos em dar passos decisivos foram descritas no primeiro artigo deste e-book:
Para os clientes, há uma sensação de conforto na medida em que podem culpar os consultores pelo insucesso. Afinal, são os consultores que fazem o trabalho, e se o trabalho é ruim todos sabem quem fracassou.
Para os consultores, há sempre a justificativa de que foram diligentes na construção do diagnóstico e da terapia, porém o cliente é indisciplinado e não respeita as prescrições.
Entretanto, assim como a água que ferve muda de fase e se transforma em vapor, a fervura desse modelo é real, e o paradigma transacional, quando ultrapassa os cem graus, se transforma em colaboração.
Já vimos que as mudanças se tornaram permanentes e complexas ao mesmo tempo.
O fato de que tenham se tornado permanentes desafia a ideia convencional de projeto com começo, meio e fim determinados.
Boa parte das divergências quanto ao final do projeto e ao cumprimento do escopo decorrem daí, e nada melhor para definir essa situação do que os versos do poeta espanhol Antonio Machado: "Caminante no hay camino / el camino se hace al andar".
Não se interprete esta frase como sinônimo de andar a esmo, mas sim de reconhecer de que andamos por trilhas, e não mais por trilhos.
E que acima de tudo, caminhamos rumo a um destino que, conforme avançamos, traz descobertas e surpresas de início imprevisíveis, muitas das quais acontecem independentemente da nossa vontade.
Os frameworks ágeis repensam o o estilo e o ritmo do percurso. Mas o que acontece aqui está além disso, pois o próprio destino é incerto embora não aleatório.
Vendo sobre outra perspectiva: o final de um projeto é apenas um marco temporal, assim como a receita do médico. Porém o que realmente importa é o desfecho, a saúde do paciente e não a qualidade ou a modernidade do tratamento.
Isso significa que, profissionalmente, o médico-consultor precisa se responsabilizar para além da consulta ou da cirurgia, e o paciente-cliente é co-responsável pelo tratamento.
O desfecho pertence a ambos.
A menos que exista essa cumplicidade e essa colaboração, a relação de consultoria estará comprometida.
Porém o fato de que as mudanças se tornaram complexas exige de ambos um outro nível de vínculo: a consciência de que o consultor não terá como conhecer, através de seus métodos, todos os componentes relevantes do contexto do cliente, e nem o cliente poderá transferir ao consultor essa responsabilidade exclusiva.
A dúvida e até a experimentação segura (safe to fail) são partes indissociáveis desse novo relacionamento.
Sob vários aspectos, clientes e consultores formam uma equipe na qual haverá sempre responsabilidades individuais de cada parte mas, também e principalmente, responsabilidades conjuntas que pressupõem colaboração.
Como chegar lá?
O primeiro passo é entendermos que "a água ferveu" e agora não corre mais para o mar.Não temos escolha, e precisamos nos acostumar a lidar com o vapor aquecido.
Em outras palavras: precisamos aprender a conviver nesse ambiente. E conviver nesse ambiente nos obriga a questionar / adaptar / abandonar práticas com as quais estamos habituados, e dentro das quais fomos formados.
Por exemplo:
Contratos têm que se tornar prioritariamente instrumentos de colaboração, e não defesas jurídicas.
Escopos jamais serão rígidos.
Soluções não existem dentro da empresa de consultoria, e serão co-criadas com os clientes.
A prudência recomenda que exista um projeto inicial que ajude clientes e consultores a entender a fundo o desafio que têm pela frente, sem o que precificar se transformará num cassino onde a médio prazo todos perdem.
O preço baseado em homens-hora deve ser relegado aos museus, até porque com a inteligência artificial continuar dependendo dele não seria nem um pouco inteligente de parte a parte.
O conceito de entregáveis desaparece, porque não há o que entregar se pensamos que a construção será conjunta.
A definição de sucesso passa a ser o que acontece depois dos projetos (o desfecho), e isso significa que a cumplicidade deve encontrar meios de persistir após a fase de construção.
O grau de transparência e confiança exigidos por esse modelo estará muito adiante dos acordos de confidencialidade existentes agora.
Por este motivo, o critério de confiança impedirá que uma empresa-cliente troque de consultores por uma simples questão de preço ou preferência do executivo de plantão, e que os consultores reproduzam em outras empresas aquilo que aprenderam de seus clientes.
Departamentos de compras e suprimentos deverão ser relegados ao que fazem de melhor: materiais de consumo, papel sanitário, e que tais: longe, muito longe da consultoria, até o dia em que sua remuneração variável deixe de incluir o desconto que extraem dos consultores.
Esta lista, que sequer está completa, dá uma primeira ideia do quanto está implicado nessa mudança, dos processos que precisamos criar ou atualizar, e das novas competências exigidas de todos nós. Menos óbvio é o fato de que consultores e clientes precisaram adotar uma mesma linguagem, mesmos conceitos e mesmos métodos. O campo de jogo mudou; se antes a consultoria era um balcão onde vendíamos serviços (embora um pouco forçada, a analogia não é de todo torta), hoje ele é uma praia onde jogamos uma modalidade de frescobol empresarial. Clientes terão que adquirir habilidades consultivas relacionadas ao sense-making, identificação precisa de necessidades desatendidas, exploração de caminhos de solução, avaliação de implicações, desenho de soluções, planos de implementação, convívio com apoios e resistências, liderança não hierárquica). Consultores terão que incorporar competências dos clientes, dentre elas o reconhecimento do jogo político (muito além das análises de stakeholders), os riscos organizacionais e profissionais, as externalidades (trabalhistas, fiscais, jurídicas) e muitas mais. Não na mesma dose, não na mesma intensidade ... porém tudo isso é inescapável se consultores quiserem atuar em nível de excelência, e se clientes quiserem obter o máximo benefício dos seus parceiros de consultoria. Difícil? Sem a menor dúvida. Seletivo? Sem a menor dúvida. Angustiante? Talvez ...
Porém a questão central é outra: existe alternativa?



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